na rua, na chuva ou na fazenda

quinta-feira, julho 15, 2010

onde a dor não tem razão



de há algum tempo atrás tenho vivido uma experiência em parte dolorosa, em parte surpreendentemente, digamos, educativa, sob o ponto de vista espiritual (sem querer ou pretender ser melodramático). tudo começou em abril do ano passado quando o meu mundinho corriqueiro se diluiu em fluidos sanguíneos e o meu mais profundo desprezo por excertos da categoria médica aflorou com violência a partir do diagnóstico de leucemia no meu filho mais novo (gabriel, 15 anos à época). a partir daí, calvários à parte já que cada um tem o seu mais íntimo, comecei a frequentar assiduamente, ambulatórios, laboratórios, quartos hospitalares... enfim, a liturgia do cargo de ser pai. no entanto, e aí é que vem tudo de bom dessa experiência que continua dolorosa, comecei a olhar, com um olhar mais sensível – característica humana muito mais presente na mulher, a sensibilidade, a sintonia fina com o mundo em seu todo – tudo o que me cercava.
nas minhas idas à clínica, me vi, subitamente cercado de não-dores, de não-doentes absurdamente doentes. alguns, com pouco tempo de viver esse mundo daqui. outros, lutando para tentar ver o amanhecer seguinte. dramático? não. apenas o que via ou sentia. via e sentia a dor das mães (onipresentes) e a perplexidade dos pais (como eu, minoria absoluta). mas, deixei de ter uma identidade única para ser “pai”. apenas “pai” se tornou o meu nome como o de todos os poucos outros que lá vão com os olhos marejados, vermelhos, mas secos (homem não chora!). me tornei muitos.
mas não se trata bem disso, o que quero falar. afora a minha tristeza, a dor do meu filho (que também se tornou a meus olhos, muitos – todos aqueles que passam à minha frente na sala de espera, na enfermaria ou que me olham curiosos enquanto não consigo cochilar ao lado de gabriel, como eles, meio sedados e com uma agulha levando uma mixórdia de química para suas veias – acabei surpreendido com a forte presença e, ao mesmo tempo a ausência da dor naquele ambiente onde a parca caminha com naturalidade.
crianças cheias de dor física, brincam pintam e bordam indiferentes à própria dor e só a acusam quando se torna insuportavelmente adulta. no entanto, adultos sucumbem diante da dor infantil e perdem as forças enquanto os pequenos se superam. nos olhos de todas as matizes, há sim, sofrimento, mas bem lá no fundo. uma sombra fugidia. cada novo paciente é um novo amigo, mais um parceiro para uma brincadeira que pode não mais acontecer na manhã seguinte. fazem do agora, uma festa. da dor, algo que simplesmente está ali. não a ignoram. sentem-na. sofrem-na. impávidos colossos, ensinam-nos a viver... enquanto, às vezes, estão à morte.

* o texto acima foi postado, originalmente, no blog "conversa de menina" por ordem de uma pessoa por quem tenho o maior apreço e admiração, a jornalista e mestra andreia santana, numa janela chamada "homem de palavra". republico-o agora como forma de mostrar um outro lado do sofrimento de quem tem seu mundo estilhaçado. é também uma forma, ainda que precoce, de agradecer o carinho, o profissionalismo e a atenção de quem lida em um terreno pantanoso onde a ceifadora está sempre presente e a esperança é, quase sempre, a corda estendida à beira do precipício. o texto é também dedicado a todos os habitantes de um mundinho à parte chamado clínica onco. a todos, pacientes e profissionais.

Um comentário:

  1. Esse é um dos textos mais belos que você já escreveu. Tudo o que diz é tão pessoal, mas ao mesmo tempo se adequa a tantas pessoas...Aceito novos textos no Conversa de Menina, sempre que vc tiver vontade, será bem-vindo entre as meninas. Bjs

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