nasci, ou me deram à luz, em
meados de 1950. não tenho a menor ideia do que eram aqueles anos ou como era a
vida da minha família. meus pais, rufino e dona anita, nunca me contaram. ou
por não saberem contar histórias – no que eu mais acredito – ou por não
quererem me contar histórias nas quais, hoje, eu não acreditaria. e é assim que
eu posso começar me contar ou contar uma história de uma quase vida que eu –
como já deu para perceber, não sei contar.
sei, pela minha cor, pela minha
estrutura familiar, que nasci pobre, remediado e de duros tempos (os de hoje,
quando tento recuperar o que não tenho em memória, também são duros.
diferentes, mas tão duros quanto aqueles que, suponho, tenha vivido). memórias
bonitas como as fugas da escola para mergulhar em rios, riachos e chafurdar na
lama, são recorrentes. outras, gloriosas (e hoje hediondas) como matar
passarinhos, patos, marrecos e bichos do chão como coelhos, preás, raposas,
veados e tantos outros também o são. tristezas? nenhumas. arrependimentos,
poucos. este, sou eu.
filho
de uma barriga de (presumo) cinco filhos, não fui ou fui, o último deles.
lembro que (e a memória falha como nunca) a minha mãe deu à luz a uma menina
que nem cheguei a conhecer (muito menos ver) em um aborto espontâneo. portanto,
pela crueldade natural da vida e da maternidade, preferiu ver as trevas ou o
paraíso. melhor para ela. lembro que a chamavam também, de anita. novamente,
este, este sou eu!
anita,
a mãe, dela, de mim, de zezito, de ivone e de vivi (apelido de antonio dos
santos, pra variar) tinha um jeito duro, doce de ser; uns olhos cor de quem não
sei o que era; um jeito espigado de bambu de paranaguá ou do riacho da guia que
eu não conheço em mim mas me vejo em outros. me vejo em alguns daqueles que
chamam de meus. filhos, netos... o quê mesmo?
quem
sou eu?
vamos
a mim? eu não tenho a menor noção ou conhecimento dos anos que envolveram minha
nascênca, minha infância ou minha adolescência. sei – e isto é muito presente –
do sacrifício em que vivíamos nos arredores de santo amaro da purificação, num
pedaço de terra chamado de terra nova, quilombo de quilombos de vários lugares.
morrotes e vales de um rio enorme (e hoje morto) que davam prazeres e
dores a quem ali vivia ou achava que
vivia. foi onde cresci.
lembro
de anita que deu olhos a danilo e aspereza a vanessa. do seu cuidado com um tal
de carlito, que virou lallis depois de ter sido batizado carlos alberto. o
carlito eu entendo, o lallis, eu compreendo... o carlos alberto, eu prefiro
esquecer.
dona
anita, como eu, sonhava, sonhou. rufino, me deu um rosto, um jeito, uma cor,
uma feição (é a cara do pai!) e eu choro como um cretino por me saber parecido
(não sei se igual) com um sujeito homem, feio e bonito ao mesmo tempo. sábio e
tão ignorante que me fez ser tanto quanto ele (também não sei se tanto) a ponto
de hoje duvidar se somos a reencarnação do outro se isto for possível. dele,
tenho poucas memórias. os meus serão assim?
falava
de dona anita (helenita, nos registros oficiais): ela me sonhava melhor. ela me
sonhava grande. o que ela me sonhava?
definitivamente,
não sou aquilo que ela esperava. tampouco sou o que eu próprio me esperava. as
vezes, sou mesquinho, tacanho ou, na pior das hipóteses, canalha. na maioria
das vezes, calhorda. comigo mesmo e poucas vezes, com os outros. isso me torna
ruim. em todos os sentidos. principalmente, comigo.
cometi
crimes em minha vida. crimes como me casar, fazer filhos que, ao contrário e
como eu, também os cometeram: danilo cometeu filhos como joão e malu (que me
olha com os olhos das duas anitas que eu amei (ou não soube amar) me
perguntando coisas que não sei responder; vanessa me deu netos que eu não
compreendo e me veem com olhos de netos. cometi outros, bem piores como não
aceitar a vingança (?) de uma filha que não soube (nem eu) ser filha e, na
consequência, não sermos netos nem avô. onde ela e eles andarão?
tenho
(?) uma mulher que me ama – pelo menos ela diz e prova porque se mantém ao meu
lado – privei-a de uma vida diferente da que tem; tenho (?) quatro pessoinhas
que me chamam de avô (diferenciando por nomes) e o que dei a eles?
sabe
aquela história do confessionário quando você entra e diz “pai perdoa, porque
pequei?” pois bem, de forma alguma, eu diria isto. não quero perdões, ou
absolvições. pequei porque pequei. simplesmente por ter pecado. perdão de quem?
eu só preciso me perdoar. e não sei fazer isto.
os
médicos, estes, sempre metidos a semideuses, dizem que existe uma experiência
de “quase morte” quando o corpo deixa de funcionar quase que completamente e
sem nenhuma explicação, ressuscitam. é a chamada “síndrome de lázaro”.
no
meu caso, já que não morri (ainda) aos 63 anos, é uma experiência de quase
vida. eu só não soube vivê-la.
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