amanhecí pensativo. um fato corriqueiro na natureza mas insólito quando visto numa grande cidade cujas árvores tem troncos de cimento e flores de parabólico alumínio me fez ficar assim pensativo. sorumbático. um gavião caçou um pombo e fez dele a piéce de resisténce de seu almoço servido no anteparo do ar-condicionado do oitavo andar da árvore/edifício em que trabalho e não fico rico (parafraseando as paralelas de belchior). desse presumido lauto almoço que pode muito bem ter sido um jantar ou mesmo café da manhã, sobraram penas, intestinos, duas tristes patinhas a acenarem ao vento um adeus à vida e, pasmem! crueldade das crueldades: a cabeça do pombo com olhos poética e tragicamente entreabertos olhando pros meus olhos curiosos. olhos que devem guardar na memória da morte o riso cruel do seu algoz de bico escancarado a comer-lhe as carnes e ignorar-lhe as entranhas (até nisso sobra o nojo visceral). o gavião matou o pombo. e daí? na natureza isto é o trivial. de novo: isto me deixou pensativo.
em "brasilha", o pombo matou o gavião. não é a primeira vez. aliás, é sim, a primeira vez. porque, da outra, o pombo feriu de morte mas não matou. os urubus o fizeram. com a galhardia dos urubus que, por sinal, não gostam de matar. preferem os já mortos. não dão tanto trabalho e já vem condimentados pela putrefação. pois bem, no caso de brasilha, o pombo não tinha asas, penas ou quaisquer outros adereços inerentes às columbinas. a única coisa em comum, era a inocência (presumida) de ambos. o pombo lá de brasilha era, até prova em contrário, um pombo limpo (digo isto porque no idioma policialês pombo sujo equivale sempre a pobre - independente da cor - e significa vagabundo) e trabalhava como caseiro do ninho do gavião. era, portanto, um pombo até certo ponto, temerário. já imaginou? pombo trabalhando pra gavião? nem o bíblico daniel teria essa coragem toda! pois bem. esse pombo limpo detonou um dos maiores gaviões da floresta de brasilha e pôs em risco o gavião-rei de penacho grisalho que quase lhe cobre o bico. a bem da verdade, o que causou surpresa em mim e frisson nas ilhotas que cercam brasilha é que vários outros gaviões menores já haviam sido derrubados em pleno vôo - mas por outros gaviões - jamais por um pombo. e olhe que teve um que não era nem tão menor assim. era do tamanho ou talvez menor do que este de quem eu tento contar a desdita e, ao mesmo tempo, fazer elegia ao pombo. ninguém jamais havia visto algo assim como suponho ter dito antes. como o pombo conseguiu derrubar tamanho gavião? aí é que vem o melhor.
o gavião, de quem eu falo - ou melhor, escrevo - como os outros gaviões que estrelam os céus daquele lugar, vinha de outras plagas, de outros ribeirões e era - assim o parecia - experiente. tinha manhas. mas, como todos os outros que trocaram suas florestas natais pela exuberância brasilhense, não esquecera suas origens e, mesmo mais cauteloso que os outros, não abandonou certos salutares hábitos, alguns prazeres que de tão prazeirosos, eram inomináveis. não vem ao caso. pelo menos, não agora. em bandos, costumavam pousar num ninho coletivo para farras homéricas e ali, em meio aos eflúvios etílicos que sempre acompanhavam essas reuniões, decidiam os destinos de toda a passarinhada e ainda por cima, embolsavam algum.
apesar da dêbacle de muitos importantes membros dessa confraria rapinal, esse nosso gavião resistia impávido a todas as tsunamis avassaladoras que passaram por e sobre brasilha. até o pombo dessa conversa resolver abrir o bico. e como abriu. e do seu bico saiu o tiro mortal que abateu o nosso gavião. mas, antes disso...minto, quando o pombo começou a arrulhar arrepiaram-se todas as penas das cabeças coroadas da rapinagem sobrevivente e todos eles assestaram suas garras e bicos ferozes em direção ao indigitado pombo arrulhador. até mesmo os gaviões togados (esses não se metiam - ao que se sabe mas não se confirma - em bandalheiras de esquinas) tentaram calar o bico do tal do pombo. chegaram a silenciá-lo com uma mordaça legal mas, o mal estava feito. os arrulhos chegaram aos ouvidos das corujas que espreitam na calada da noite e repercutiram pelos bicos dos papagaios faladores que também costumam habitar altos galhos de brasilha. os gaviões togados sabiamente se retraíram um pouco em sua pompa e circunstância enquanto os outros, já auxiliados por gaviões menores esquadrinhavam todos os cantos e recantos da vidinha caseira do pombo caseiro do gavião ferido e agonizante. descobriram que ele nascera de ninho bastardo, de ovo não reconhecido, que estocara trinta mil milhos e por aí afora.
apesar de todos os esforços, o tiro impulsionado pelos arrulhos do pombo revelou-se mortal e o grande gavião morreu. numa conversa com amigos de pombal e alguns papagaios que acabaram tornando-se co-algozes do grande gavião, o pombo arrulhara antes que arrulharia até a morte. agora, em nova conversa, já carpindo o defuntado, o pombo arrulha: "ficou provado que o lado mais fraco não é o lado de um simples caseiro. o lado mais fraco é o lado da mentira".
contei toda essa embromação acima só para dizer o por quê de ter ficado pensativo ao descobrir um pombo estraçalhado por um gavião no anteparo do ar-condicionado do prédio em que trabalho: que mundo é este, em que simples caseiros derrubam ministros e põem de pernas bambas e orelhas em pé ilustríssimas e altíssimas figuras de um país? claro, como escreví antes, houve um outro caso, de um outro pombo, nesse caso, motorista e não caseiro, que alvejou profundamente um outro figuraço e detonou todo um processo que culminou com sua queda. precisamos, urgentemente, eleger alguns oficiais de limpeza de aeroportos que não se incomodam de devolver aos seus legítimos donos alguns milhares de dólares encontrados em banheiros; precisamos encontrar algumas centenas de francenildos caseiros, outros tantos egbertos motoristas e assim, darmos uma faxinada geral nesse lugar. se bem que temos uma outra alternativa: se nos sentirmos um tanto quanto inseguros podemos correr pra casa e demitir a faxineira, o zelador, o lavador de carro por que, senão o bicho pode pegar.
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